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Calango está em vias de ser absorvido pela massificação
Em Raposo, distrito de Itaperuna, os hotéis oferecem todas as noites, bailes de calango, canto e dança típicos do centro-norte fluminense e de Minas Gerais. No caso de Raposo, o calango "deu a volta por cima" e está, inclusive, ganhando força e importância como som e ritmo, pois os veranistas, provenientes de vários pontos do país – Raposo é estância hidromineral – dançam e pedem bis. De modo geral, entretanto, essa manifestação do folclore fluminense está em vias de ser absorvida pela cultura de "massa". Escasseiam os bons sanfoneiros, sem o apoio, o calango não é tão quente e as inovações introduzidas no trabalho agrícola, dispersando o homem do campo desencorajam os cantadores. Estas e outras informações sobre calango estão no primeiro dos "Folhetos", editados pela Sociedade Amigos do Museu de Artes e Tradições Populares. A coleção destina-se a divulgar a arte popular fluminense, motivando o interesse e incentivando estudos e pesquisas sobre os temas abordados, segundo Vera de Vives, coordenadora dos "Folhetos" e diretora-adjunta do MATP, orgão da Femurj.
Valor da informação
A literatura especializada é praticamente muda, a respeito do calango. O Dicionário do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo (Edições de Ouro, 1954, v.1, p.352) é o único de oito de compêndios consultados que registra informações sobre o calango. A ausência de estudos sobre ele é que, aliás, sublinha o valor do depoimento de Silvio Paixão, jornalista natural de Itaperuna, autor do texto do "Folheto", que vivenciou os bailes de calango e aplaudiu, em seu município de origem calangueiros famosos.
O calango é provavelmente originário da África, acreditando-se que os escravos o introduziram no Brasil como canto de trabalho e canto de folgar. Afora os Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, segundo Câmara Cascudo, existe calango no nordeste brasileiro, mas apenas cantado. O refrão entoado pelo improvisador, é repetido pelo coro, com acompanhamento de palmas. No Rio de Janeiro, além de música de dança, o calango é desafio, também chamado de "lera" em alguns municípios. O instrumental, nos bailes é formado, além da sanfona de oito baixos, por instrumentos de percussão, violão e cavaquinho. Nos desafios os contendores podem inclusive de prescindir de instrumentos o que acontece com freqüência, se o canto se liga ao trabalho.
Mas o local preferido para os desafios são as portas de vendas da roça, quando, ao fim do dia, parceiros e compadres se encontram, para beber cachaça e conversar. De repente, o verso se solta, um cantador espicaçando o outro. E a resposta costuma vir pronta e ferina, e então tudo e todos na localidade podem servir de tema aos desafiantes. Eles não apenas cantam, também dançam, rodopiando, e os assistentes participam da refrega, com vaias, aplausos, intervenções e comentários de apoio ou repúdio.
Já no calango-de-baile costuma-se iniciar o canto com versos tradicionais, decorados, que cedem lugar ao desafio improvisado quando o baile esquenta e se anima. Por isso mesmo, é comum encontrar um desafio dentro do baile. O mestre calangueiro toca sua sanfona sentado, mas gingando o corpo, como se sentado dançasse, e a seu lado surge um desafiante, repentista, que intercala na música versos provocantes. Calangueiro nenhum recusa o desafio, que só cessa pelo cansaço.
Vocabulário e métrica do calango
Os animais são uma constante, nos versos dos calangueiros. Câmara Cascudo fala em "gesta de animais", e o depoimento de Silvio Paixão confirma a assertiva: em possível ligação com as origens africanas – e a personificação de forças, virtudes e defeitos, em animais, faz parte das tradições e do folclore africano – o calangueiro não só se refere aos animais domésticos e selvagens, aves e bichos de pêlo, como enaltece sua importância. Deles se serve também para construir comparações laudatórias ou sarcásticas com que atinge o contendor.
Outros temas também usuais no calango são as pessoas dos próprios cantadores, que tanto se enaltecem e cantam suas próprias façanhas quanto agridem verbalmente os contendores.
A rima é normalmente pobre, ecoando geralmente em vogais, mas ainda assim muito versatilidade se exige dos calangueiros. Observamos em Duas Barras que o desafiado é obrigado a iniciar seu canto pela repetição do refrão introduzido pelo contendor. Quem inicia o desafio pode também "chamar" o desafiado a uma "linha", isto é, impor-lhe uma rima expressamente. Se o cantador diz, por exemplo: "estou lhe chamando na linha do sabiá", o desafiado terá que armar suas respostas com finais de versos apoiadas na vogal A, aberta.
Quanto ao ritmo, é quaternário, e o calangueiro o respeita, onde improvisa, adapta, é no que respeita a rima. No auge do entusiasmo, pode até fugir da "chamada" a determinada "linha".
A dança, no calango-de-baile, traz pares enlaçados muito juntos, que bailam balanceando o corpo. Há quem diga que o calango é um samba rural, o que nos parece correto, quanto ao calango-de-baile. Quanto ao calango-desafio, é misterioso, estranho e surpreendente o rodopio a que se entregam os contendores quando no calor da refrega esperam que o adversário termine de cantar para lhe dirigir resposta. O rodar insistente que muitas vezes leva o cantador a firmar-se em um pé só, se parece bastante aos volteios rituais dos feiticeiros africanos, e seria um elemento a mais a ligar o calango às origens negras.
Calango e mito
Daí também porque a palavra calango seja, no norte-fluminense, de acordo com Silvio Paixão, indicativa de saci-pererê, o negrinho de uma perna só, assoviador melodioso e exímio saltador. E, de acordo com o mesmo autor talvez por isso o calango qualifique também o "homem de melhor briga, melhor no trabalho, melhor de dança em tudo, e também misteriosamente invencível, dotado de qualidade singulares e inexplicáveis para vencer sempre".
É inegavelmente forte o conteúdo mágico da palavra calango, cujo significado abrange ainda o capeta. Conta Silvio Paixão que "a expressão mais forte desse sentido adquiriu forma física na década de 1950 em Itaperuna e arredores". Chamava-se Calango um famoso arrombador, assaltante de vendas que também se introduzia no quarto de mocinhas e senhoras, abrindo portas trancadas, cheias de fechaduras e até cadeias. "Os pais invocavam seu nome para assustar os filhos, e no chamamento estava presente o duplo significado, o do bandido e o do diabo com quem seguramente se aparentava, e de cujos poderes misteriosos seguramente participava".
E prossegue Silvio Paixão:
A conotação meio diabólica e misteriosa da palavra poderia explicar também porque os camaleões se chamam calango em quase todo o estado do Rio de Janeiro. O camaleão muda de cor, é arisco e veloz nas suas corridas sob o mato e sobre as pedras, não teme os calores fortes. É um lagarto grande, semelhante a um pequeno dragão. O povo o acredita muito venenoso. Vence o adversário com um dom só seu, o do mimetismo que parece mágica, assumindo a cor da pedra ou do galho onde se detém".
Do prestígio do calango é testemunho também a reverência que cerca os calangueiros mais famosos. São convidados para alegrar bailes, e sua ocasional ausência é lamentada. Silvio Paixão cita, em O calango norte-fluminense, o mestre Tião, calangueiro de Itaperuna, que introduziu a dança nos bailes dos hotéis. É sanfoneiro e três rapazes de sua família o acompanham com instrumentos de percussão. Afirma a quem o queira ouvir que o calango é o melhor ritmo que existe, e que por seu gosto, todos os bailes do mundo incluiriam seu balanço.
Geografia do calango
A partir de Cachoeiras de Macacu, pode-se encontrar bons calangueiros no Estado do Rio de Janeiro. Em Duas Barras, concentram-se muitos deles. O norte e nordeste do estado são porém particularmente ricos, no que respeita o número de cantadores. Miracema, Itaperuna, Bom Jesus, Natividade, Porciúncula, Laje do Muriaé, são terras de excelentes improvisadores. Além disso, ali os bailes de calango são ainda acontecimento freqüente, constituindo-se, no interior dos municípios, na única ocasião de lazer e convívio social de suas populações. Daí a importância que apesar do avanço da cultura de massa o canto do calango ainda tem em nosso Estado.
Valor da informação
A literatura especializada é praticamente muda, a respeito do calango. O Dicionário do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo (Edições de Ouro, 1954, v.1, p.352) é o único de oito de compêndios consultados que registra informações sobre o calango. A ausência de estudos sobre ele é que, aliás, sublinha o valor do depoimento de Silvio Paixão, jornalista natural de Itaperuna, autor do texto do "Folheto", que vivenciou os bailes de calango e aplaudiu, em seu município de origem calangueiros famosos.
O calango é provavelmente originário da África, acreditando-se que os escravos o introduziram no Brasil como canto de trabalho e canto de folgar. Afora os Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, segundo Câmara Cascudo, existe calango no nordeste brasileiro, mas apenas cantado. O refrão entoado pelo improvisador, é repetido pelo coro, com acompanhamento de palmas. No Rio de Janeiro, além de música de dança, o calango é desafio, também chamado de "lera" em alguns municípios. O instrumental, nos bailes é formado, além da sanfona de oito baixos, por instrumentos de percussão, violão e cavaquinho. Nos desafios os contendores podem inclusive de prescindir de instrumentos o que acontece com freqüência, se o canto se liga ao trabalho.
Mas o local preferido para os desafios são as portas de vendas da roça, quando, ao fim do dia, parceiros e compadres se encontram, para beber cachaça e conversar. De repente, o verso se solta, um cantador espicaçando o outro. E a resposta costuma vir pronta e ferina, e então tudo e todos na localidade podem servir de tema aos desafiantes. Eles não apenas cantam, também dançam, rodopiando, e os assistentes participam da refrega, com vaias, aplausos, intervenções e comentários de apoio ou repúdio.
Já no calango-de-baile costuma-se iniciar o canto com versos tradicionais, decorados, que cedem lugar ao desafio improvisado quando o baile esquenta e se anima. Por isso mesmo, é comum encontrar um desafio dentro do baile. O mestre calangueiro toca sua sanfona sentado, mas gingando o corpo, como se sentado dançasse, e a seu lado surge um desafiante, repentista, que intercala na música versos provocantes. Calangueiro nenhum recusa o desafio, que só cessa pelo cansaço.
Vocabulário e métrica do calango
Os animais são uma constante, nos versos dos calangueiros. Câmara Cascudo fala em "gesta de animais", e o depoimento de Silvio Paixão confirma a assertiva: em possível ligação com as origens africanas – e a personificação de forças, virtudes e defeitos, em animais, faz parte das tradições e do folclore africano – o calangueiro não só se refere aos animais domésticos e selvagens, aves e bichos de pêlo, como enaltece sua importância. Deles se serve também para construir comparações laudatórias ou sarcásticas com que atinge o contendor.
Outros temas também usuais no calango são as pessoas dos próprios cantadores, que tanto se enaltecem e cantam suas próprias façanhas quanto agridem verbalmente os contendores.
A rima é normalmente pobre, ecoando geralmente em vogais, mas ainda assim muito versatilidade se exige dos calangueiros. Observamos em Duas Barras que o desafiado é obrigado a iniciar seu canto pela repetição do refrão introduzido pelo contendor. Quem inicia o desafio pode também "chamar" o desafiado a uma "linha", isto é, impor-lhe uma rima expressamente. Se o cantador diz, por exemplo: "estou lhe chamando na linha do sabiá", o desafiado terá que armar suas respostas com finais de versos apoiadas na vogal A, aberta.
Quanto ao ritmo, é quaternário, e o calangueiro o respeita, onde improvisa, adapta, é no que respeita a rima. No auge do entusiasmo, pode até fugir da "chamada" a determinada "linha".
A dança, no calango-de-baile, traz pares enlaçados muito juntos, que bailam balanceando o corpo. Há quem diga que o calango é um samba rural, o que nos parece correto, quanto ao calango-de-baile. Quanto ao calango-desafio, é misterioso, estranho e surpreendente o rodopio a que se entregam os contendores quando no calor da refrega esperam que o adversário termine de cantar para lhe dirigir resposta. O rodar insistente que muitas vezes leva o cantador a firmar-se em um pé só, se parece bastante aos volteios rituais dos feiticeiros africanos, e seria um elemento a mais a ligar o calango às origens negras.
Calango e mito
Daí também porque a palavra calango seja, no norte-fluminense, de acordo com Silvio Paixão, indicativa de saci-pererê, o negrinho de uma perna só, assoviador melodioso e exímio saltador. E, de acordo com o mesmo autor talvez por isso o calango qualifique também o "homem de melhor briga, melhor no trabalho, melhor de dança em tudo, e também misteriosamente invencível, dotado de qualidade singulares e inexplicáveis para vencer sempre".
É inegavelmente forte o conteúdo mágico da palavra calango, cujo significado abrange ainda o capeta. Conta Silvio Paixão que "a expressão mais forte desse sentido adquiriu forma física na década de 1950 em Itaperuna e arredores". Chamava-se Calango um famoso arrombador, assaltante de vendas que também se introduzia no quarto de mocinhas e senhoras, abrindo portas trancadas, cheias de fechaduras e até cadeias. "Os pais invocavam seu nome para assustar os filhos, e no chamamento estava presente o duplo significado, o do bandido e o do diabo com quem seguramente se aparentava, e de cujos poderes misteriosos seguramente participava".
E prossegue Silvio Paixão:
A conotação meio diabólica e misteriosa da palavra poderia explicar também porque os camaleões se chamam calango em quase todo o estado do Rio de Janeiro. O camaleão muda de cor, é arisco e veloz nas suas corridas sob o mato e sobre as pedras, não teme os calores fortes. É um lagarto grande, semelhante a um pequeno dragão. O povo o acredita muito venenoso. Vence o adversário com um dom só seu, o do mimetismo que parece mágica, assumindo a cor da pedra ou do galho onde se detém".
Do prestígio do calango é testemunho também a reverência que cerca os calangueiros mais famosos. São convidados para alegrar bailes, e sua ocasional ausência é lamentada. Silvio Paixão cita, em O calango norte-fluminense, o mestre Tião, calangueiro de Itaperuna, que introduziu a dança nos bailes dos hotéis. É sanfoneiro e três rapazes de sua família o acompanham com instrumentos de percussão. Afirma a quem o queira ouvir que o calango é o melhor ritmo que existe, e que por seu gosto, todos os bailes do mundo incluiriam seu balanço.
Geografia do calango
A partir de Cachoeiras de Macacu, pode-se encontrar bons calangueiros no Estado do Rio de Janeiro. Em Duas Barras, concentram-se muitos deles. O norte e nordeste do estado são porém particularmente ricos, no que respeita o número de cantadores. Miracema, Itaperuna, Bom Jesus, Natividade, Porciúncula, Laje do Muriaé, são terras de excelentes improvisadores. Além disso, ali os bailes de calango são ainda acontecimento freqüente, constituindo-se, no interior dos municípios, na única ocasião de lazer e convívio social de suas populações. Daí a importância que apesar do avanço da cultura de massa o canto do calango ainda tem em nosso Estado.
("Calango está em vias de ser absorvido pela massificação". O Fluminense. Niterói, 27 de fevereiro de 1977)
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