O calango e a sanfona de 8 baixos em Petropolis
Escrito por Léo Rugero em 2009
Hoje, 13 de maio, dia "oficial" da Abolição da escravatura, já não é mais o dia de comemorações de afro-descendentes, tendo sido escolhido, por razões óbvias, o dia de Zumbi dos Palmares, legitimado historicamente como líder de movimentos emancipatorios (quilombos).
No entanto, para mim, o dia 13 de maio será sempre uma data importante, que marca o falecimento de um mestre e amigo, João Torquato, que realizou sua passagem no ano de 2006. Portanto, é sempre um dia que me traz a doce lembrança deste saudoso amigo e sanfoneiro.
Meu primeiro encontro com João foi também o meu primeiro contato com a sanfona de 8 baixos, instrumento que, até então, eu desconhecia.Corria o ano de 1999, quando, por intermédio de João, pude assistir, no Bairro Alto Taquara, em Petropolis, a uma roda de
calango. A partir desta noite, outros encontros musicais surgiriam, e acima disso, uma sólida amizade, que se refletiria em visitas semanais, devido a proximidade de nossa vizinhança.
João Torquato nasceu no Sitio Taquara em 20 de Outubro de 1947. Oriundo de uma familia de migrantes mineiros, herdou os saberes musicais de seu pai. Ainda menino, ganha de presente uma sanfona Hohner, instrumento que lhe acompanhou por toda a vida. Casando-se, foi pai de quatro filhos, três mulheres e um homem. Trabalhou em todo o tipo de oficios, desde caseiro à motorista. Segundo contava, nos anos 70 teve certa atividade profissional como músico, tocando em bailes.
A formação musical de João passava, indubitavelmente, por tradições musicais ligadas aos descendentes de escravos do Estado de Minas Gerais. Em consequência da maçiça migração de mineiros ao município de Petropolis, no Estado do Rio de Janeiro, para o trabalho braçal em residências de veraneio de familias abastadas. O bairro Taquara é um dos lugares onde houve, no passado, um dos maiores fluxos neste sentido. Práticas musicais tradicionais foram mantidas até meados dos anos 90, quando, por uma convergência de causas socioeconômicas conduziriam estas práticas musicais à extinção. Os bailes de calango seriam substituidos, com o advento da luz elétrica em locais até então isolados, como o bairro Alto Taquara, por musica reproduzida mecanicamente, ou pela televisão. Novas influências musicais decorrentes da musica massiva, também remodelam o gosto musical, sobretudo entre os jovens, seduzidos por novas influências midiáticas da musica afro-brasileira como o pagode e o funk. Também por volta desta época, as igrejas evangélicas, com certa profilaxia, inibem através da ação pastoral algumas práticas musicais tradicionais, frequentemente associadas ao paganismo, entre as quais, o calango, a umbanda e a folia de reis. No entanto, entre as práticas musicais que transcorrem atualmente no interior de templos evangelicos no Bairro Alto Taquara, pudemos observar um hibridismo entre o hinário evangélico tradicional, e ritmos do calango, umbanda e da folia de reis, demonstrando de alguma forma, uma linha de continuidade, seja na maneira de cantar, no uso de palmeado, e também em alguns instrumentos de percussão. Conforme observa Bruno Nettl, em processos onde há "mudança musical", "devemos procurar os elementos que mantém a unidade ao longo do tempo". Ainda que muitos jovens do Alto Taquara provavelmente não conheçam ou mesmo nunca tenham ouvido falar a respeito do calango ou da folia de reis, residuos destas musicas estão presentes em suas novas práticas, ainda que estas sejam muito distintas das praticas de seus pais ou avós. "Tenho a impressão de que quanto mais radicais forem as mudanças em um estilo musical, mais significativos são esses fatores, às vezes obscuros, que garantem a continuidade"(Nettl, 2006, 28).
No calango, a instrumentação básica é composta de sanfona de 8 baixos, como instrumento solista e acompanhador, e pandeiro. A estes podem ser acrescidos outros instrumentos, como viola de dez cordas, violão e outros instrumentos de percussão, dependendo dos recursos de cada comunidade.A improvisação é um elemento importante na música do calango, seja em sua forma cantada ( o calango de desafio), onde dois cantores se alternam em quadras rimadas e improvisadas, como no calango instrumental, solado em sanfona de 8 baixos. Os calangos ocorriam na forma de bailes organizados pelas comunidades nos finais de semana, ou de forma espontânea, no encontro fortuito de "calangueiros" (praticantes do calango) no final dos dias, em fundos de quintal ou na porta das "biroscas".
João Torquato era um sanfoneiro completo neste gênero musical, dominando tanto os padrões de acompanhamento, como temas instrumentais.
Atualmente, os calangueiros em Petropolis se situam dispersos, e decorrente deste fato, raramente há encontros entre eles, ainda que informalmente.A faixa etária dos calangueiros mais jovens está entre os 50 e 60 anos, o que denota a dissolução desta prática entre as novas gerações.
Referências:
Nettl, Bruno. O estudo comparativo da mudança musical: Estudos de caso de quatro culturas. Revista ANTROPOLOGICAS, ano 10, volume 17(1): 11-34 (2006)
Peres, Leonardo Rugero. Anotações de campo.1999 - 2009.