Matéria originalmente publicada no blog "Amálgama"
A história e as histórias da música nordestina
Livro lançado recentemente soma elementos importantíssimos para a afirmação da memória da música do Nordeste.
Tenho vergonha de dizer que o tema deste livro foi em grande parte novo para mim, afinal sou professor de História da Música Brasileira, e essa disciplina vem sendo marcada por uma inominável quantidade de exclusões que se praticam em seu nome. Existe uma tradição consolidada como mainstream em torno do samba carioca dos anos 1920-40, retomada a partir da miríade de crônicas jornalísticas e histórias da música popular brasileira que vão surgindo a partir da década de 1950, e que servem como ponto de apoio para a retomada do que Caetano chama de “linha evolutiva”: a partir da Bossa Nova, toda a modernização que resulta na sigla MPB se faz com base no samba tradicional/tradicionalizado de décadas anteriores. Esse processo todo está mais do que bem descrito/analisado no texto clássico de Napolitano e Wasserman (pdf aqui).
Ou seja, para chegar-se ao consenso de que Música Popular Brasileira é sinônimo de tudo o que veio da tradição do samba, procedeu-se uma violência simbólica excludente, deixando de fora, por exemplo, a música caipira/sertaneja, o rock brasileiro, e também a música nordestina. Por tudo isso, escrever uma história da música nordestina é uma ação política fundamental, e o livroO fole roncou! – Uma história do forró, de Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues, traz uma grande contribuição. Afinal, para que a música nordestina receba o lugar que merece na nossa memória cultural e na História da Música Brasileira, é necessário fazer o que já vem sendo feito com o samba há uns oitenta anos: escrever sobre ela.
Só por isso, já é importante ler o livro lançado recentemente pela Zahar. Mas isso também não exime os autores das responsabilidades sobre os problemas da edição. Vou então dividir o livro em duas abordagens: primeiro falo dos defeitos, para terminar falando das qualidades.
O grande problema do livro é o mesmo de vários outros de mesmo teor. Por exemplo, tem uma história do rock que resenhei aqui no Amálgama tempos atrás com problemas parecidos. Sendo jornalistas, os autores escrevem o livro num formato de reportagem infinita, como se estivessem escrevendo para um jornal, só que sem aquelas irritantes limitações de espaço. Faltou aos autores a necessária formação em música e em história para conseguir dar a abordagem merecida para um assunto com essa importância. (Mas como o pessoal que tem a tal formação necessária não está trabalhando nisso, que bom que alguém vem cobrir as indesculpáveis lacunas.)
Termino de ler o livro e continuo sem saber quase nada sobre a música nordestina. Sei muito sobre o anedotário de vários artistas importantes do gênero (na verdade, o forró como gênero nem mesmo se afirma no livro, ficando apenas como um gancho no título). Sei dos problemas conjugais de cada um, que tipo de dor sentiram quando morreram, como se conheceram os vários parceiros importantes de sua música. Não sei quase nada da possibilidade de confirmar as informações do livro, pois os autores têm o péssimo hábito de não indicar de onde vêm as informações. É claro que a maioria do público não vai querer interromper a leitura para ficar conferindo essas coisas, mas notas de fim de capítulo resolveriam muito bem o problema – vão a elas apenas os leitores especializados, que querem confirmar as informações. Também não é completa a bibliografia que vem ao final, pois várias obras mencionadas ao longo do livro não aparecem lá.
Tem muita coisa que vem de acervos de jornais, e como estes não são corretamente indicados, muitos dados ficam como informação perdida. Não daria nenhum trabalho indicar nome do jornal e data da matéria para quem precisasse ir atrás de algum ponto. Também tem muita informação que claramente saiu de depoimentos. Alguns eles indicam serem os gravados pelo MIS-RJ, e isso dá para investigar; mas acredito que eles tomaram muito depoimento de gente importante próxima aos artistas citados, o que acabamos não tendo certeza. Esse tipo de informação acurada daria mais valor ao livro. A não explicitação das fontes de pesquisa joga tudo numa imensa dúvida, que diminui demais o valor do trabalho. Isso fica ainda mais prejudicado quando os autores partem do pressuposto de que tudo precisa ser explicado, desde os detalhes da infância dos artistas até a história das cidades de onde eles se originaram. Obviamente, boa parte desse tipo de informação está envolta numa nuvem de mistificação, e os autores têm uma boa fé excessiva quanto ao que apuraram de fontes incertas.
Tirando esses problemas, o livro assoma com grandes qualidades. Como eu já disse no início, a música nordestina é solenemente ignorada nos livros de História da Música Brasileira. O compromisso de certos autores com algum tipo de “bom gosto” duvidoso os leva às exclusões inaceitáveis. São o mesmo tipo de gente que tinha o apelido “pau de arara” ou “paraíbas” para os migrantes que vieram fazer uma vida melhor no Sudeste (Rio e São Paulo) e acabaram trazendo uma imensa tradição musical local para dentro do mercado fonográfico e para tudo o que se concebe como “música brasileira”. Nada é mais brasileiro do que a música nordestina, afinal, a colonização começou por lá, e o sertão é ponto onde as tradições mais antigas estão bem sedimentadas e arraigadas. Quando isso se encontra com as violentas transformações modernizadoras de meados dos século XX, surge essa música pujante.
O livro segue a trilha de artistas pouco estudados, começando com Luiz Gonzaga, seguindo por Marinês e Jackson do Pandeiro. Tudo já na década de 1950, quando o Baião se consolida como gênero fonográfico. A obra segue a trilha do “esquecimento” desses artistas frente às novidades da indústria fonográfica dos anos 1960, e pega o ponto de recuperação da velha guarda a partir de novas gerações que se inseriram na MPB, como Fagner ou Elba Ramalho – o primeiro ligando-se profundamente a Gonzagão, e a última a Marinês.
Para mim, as partes mais interessantes do livro são as descrições dos processos de produção de Abdias nas gravadoras do Rio de Janeiro e o surgimento do forró moderno nas mãos de Emanuel Gurgel, com sua banda Mastruz com Leite e sua gravadora Som Zoom na Fortaleza dos anos 1990. Também foi muito útil descobrir, entre as poucas fontes de pesquisa corretamente indicadas, um livro que parece trazer a abordagem que estou procurando: Forró no asfalto (2003) é mais mais acadêmico e mais fundamentado; e a dissertação Com respeito aos 8 baixos (pdf), que me parece trazer uma abordagem musicológica bem na linha do que os departamentos de música deveriam estar correndo fazer.
Então fica assim: é urgente ter mais gente estudando o assunto, e o blog de Leonardo Rugero, que escreveu a dissertação mencionada acima pode ser um bom ponto de partida, cheio de links para lugares onde se acham mais informações, gravações, vídeos e tal. O livro O fole roncou! vai ser uma leitura importante, mas quem quiser estudar o assunto não vai poder ficar só com isso.
::: O fole roncou! – Uma história do forró :::
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