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12 de fev. de 2012

Dos 8 aos 120 baixos, de Januário a Luiz Gonzaga – Algumas impressões sobre a sanfona na região Nordeste Leo Rugero


Olá amigos,

segue abaixo a versão integral do artigo publicado parcialmente na revista da Unidos da Tijuca. As notas se encontram no final do texto.

Saudações sanfoneiras,

Leo Rugero




Dos 8 aos 120 baixos, de Januário a Luiz Gonzaga – Algumas impressões sobre a sanfona na região Nordeste            
Leo Rugero

No dia 23 de maio de 1829, construtor de órgãos austríaco Cyrill Demian registrava a patente de seu novo invento, um instrumento musical que seria batizado como “acordeom”. A novidade despertaria o interesse de outros construtores de instrumentos, suscitando o surgimento de novos modelos e formatos. Aos poucos, a invenção se espalharia por toda Europa e conseqüentemente para as respectivas colônias.
A partir da segunda metade do séc. XIX, o acordeom começa a ser amplamente difundido no Brasil, processo que se intensifica através da maciça migração italiana na região Sul. Em meio à leva de imigrantes, estavam instrumentistas e construtores de acordeom, que a essa altura, já havia se tornado uma verdadeira febre na Europa.
Entretanto, ainda não sabemos detalhadamente como o acordeom se espalhou no Nordeste brasileiro. Provavelmente, isso teria ocorrido ao longo do Séc.XIX, pelas mãos de mascates, tropeiros, caixeiros-viajantes. Na virada do Séc. XX, o instrumento começa a adquirir relevo nas práticas musicais desta região, com a rápida assimilação de um modelo específico de acordeom diatônico, que passou a ser regionalmente conhecido como fole de oito baixos ou sanfona de oito baixos. Para o musicólogo paraibano Baptista Siqueira, a sanfona teria gradualmente substituído a viola de arame[1] no contexto dos bailes rurais[2]. Como as sanfonas eram pequenas, leves, facilmente transportáveis, e ainda poderiam conservar a afinação por um período longo de tempo, o instrumento teria sido facilmente adaptado à vida nômade de tropeiros e cangaceiros ou mesmo entre vaqueiros e boiadeiros a serviço dos latifúndios, de forma análoga ao que teria ocorrido na região cisplatina[3]. Destes instrumentos poderia se extrair um som de forte intensidade, capaz de ser ouvido a distância, sendo ideal para os bailes “nas salas das choupanas, em danças animadas, nas vivendas dos pés de serra”[4].
Na região Nordeste, este tipo de acordeom recebeu uma afinação peculiar, um repertório específico e um estilo característico. Devido à presença intrínseca em festividades, difundiu-se entre as populações da zona rural e de periferia urbana, constituindo o imprescindível papel do ”sanfoneiro” em atividades sociais como casamentos, batizados, festas do ciclo junino, sobretudo no contexto de instrumento animador dos bailes (forrós). O repertório tradicional foi sendo construído através da apropriação e adaptação de danças européias que haviam sido aclimatadas aos sertões, tais como valsa, scottish(xote),  polca e quadrilha. Também seriam incorporadas danças de provável origem autóctone como o baião e o xaxado que, mais tarde, viriam a ser adaptadas por Luiz Gonzaga ao contexto fonográfico de sua época. A consolidação de um mercado fonográfico para a produção de música de origem nordestina se solidificaria com a consagração de Luiz Gonzaga no Rio de Janeiro nas décadas de 1940 e 50[5], possibilitando que o estilo nordestino da sanfona obtivesse reconhecimento e conquistasse um segmento significativo no mercado fonográfico destinado a música nordestina.
A venturosa carreira fonográfica de Gonzaga se inicia no dia 14 de março de 1941, quando realiza suas primeiras gravações como solista de acordeom nos estúdios da RCA-Victor, no Rio de Janeiro. A primeira música que gravou foi  “Vira e Mexe”, um solo instrumental que despertaria o interesse de público e crítica, não apenas devido a brejeirice e vivacidade do intérprete. bem como ao domínio técnico e o estilo inovador trazido pelo solista.
O que havia de tão diferenciado no estilo de Luiz Gonzaga? Para responder a isso é necessário regressarmos ao passado, em direção à Serra do Araripe, mais precisamente na Fazenda Caiçara, terras outrora pertencentes ao coronel Gauder Maximiliano Alencar de Araripe, o Barão de Exu[6]. Foi bem ali, pleno sertão de Pernambuco, que em 13 de dezembro de 1912, dia de São Luiz Gonzaga, viria ao mundo o primogênito do casal Januário José dos Santos e Ana Batista de Jesus. Ainda pequeno, o menino Luiz Gonzaga começaria a se interessar pelos sons extraídos da sanfona de oito baixos pelos dedos ágeis de seu pai, respeitado tocador e afinador de sanfonas da região. Logo, não demoraria muito para que o rebento seguisse os passos do pai Januário. Em 1920, por intermédio do Coronel Manuel Aires de Alencar, o menino Gonzaga adquire seu primeiro instrumento, uma sanfona de oito baixos Koch, marca Veado[7]. Vieram então os primeiros bailes e o filho de Januário foi adquirindo prestígio e despertando admiração entre os arredores da Serra do Araripe.
 Assim, Luiz Gonzaga foi crescendo, com seu forte temperamento artístico moldado pela tradição músico - poética dos sertões: os aboios dos vaqueiros, os desafios dos cantadores, as ladainhas das cantadeiras, a música das bandas de pífanos e sobretudo, o som da sanfona de oito baixos do velho Januário, tal como um crisol, refletindo todas as influências circundantes. E foi esta bagagem que Luiz Gonzaga levou consigo em seu “matulão”, desde quando arribou o pé de casa, ainda com “dezoito anos incompletos”[8]. Algum tempo depois, na década de 1930, Luiz Gonzaga viria a conhecer  o acordeom de cento e vinte baixos com teclado de piano para a mão direita, modelo então muito em voga na região Sudeste. Prontamente adquire um exemplar do instrumento e através de um colega do Exército, o mineiro Domingos Ambrósio, aprende a tocá-lo.
Portanto, o estilo inconfundível delineado por Luiz Gonzaga se desenvolve a partir do equilíbrio entre a prática musical da sanfona de oito baixos da região Nordeste e a incorporação do acordeom de cento e vinte baixos, tão presente nos centros urbanos da região Sudeste, mas ainda desconhecido no sertão nordestino. A partir de 1949, a definitiva consagração de Luiz Gonzaga com “O baião” tornaria o acordeom de teclado e cento e vinte baixos, um instrumento muito difundido no sertão nordestino.
Com o xote[9] “Respeita Januário” de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, a prática nordestina da sanfona recebe aquela que parece ser sua mais convincente perspectiva histórica. Esta música descreve uma visita de Luiz Gonzaga ao seu berço natal, o município de Exu, no alto sertão pernambucano, depois de sua consagração profissional no Sudeste, onde já havia recebido o título honorífico de “Rei do Baião”[10]. Luiz Gonzaga trazia em sua bagagem, um moderno acordeom de teclado e cento e vinte baixos, que, aquela altura, nas regiões interioranas, ainda consistia em uma “novidade”. Do mesmo modo, trazia a influência midiática de cantor, compositor e acordeonista de sucesso fonográfico e radiofônico. Porém, a certo momento da narrativa, surge um personagem, o vaqueiro conhecido como “Velho Jacó”, que adverte o rei do baião, dizendo: “Luiz, respeite os oito baixos do seu pai”.

Quando eu cheguei lá no sertão, eu quis mangar de Januário com meu fole prateado. Só de baixo cento e vinte, botão preto miudinho feito nego impariado. Mas, antes de fazer bonito, de passagem por Granito, foram logo me dizendo: de Itaboca à Rancharia, de Salgueiro à Bodocó, Januário é o maior! E foi aí que me falou meio zangado o “veio” Jacó: - Luiz, respeito os oito baixos, Luiz, respeito os oito baixos, Luiz, tu pode ser mais famoso, mas seu pai é mais tinhoso e com ele ninguém vai, Luiz. Luiz, respeite os oito baixos do seu pai!

Sendo o fole de oito baixos um instrumento que antecede historicamente o acordeom de cento e vinte baixos em quase um século, as construções simbólicas em torno das representações destes dois instrumentos na cultura nordestina foram edificadas ao redor  das relações entre pai e filho, moderno e tradicional, urbano e agrário, a migração nordestina para os grandes centros urbanos e a permanência do homem no campo.
Sob o impacto alvissareiro de “Respeita Januário”, um número  significativo de instrumentistas representativos da música instrumental praticada no fole de oito baixos nos bailes rurais, iniciam carreira fonográficas relativamente estáveis, a partir das gravações pioneiras do alagoano Gerson Filho, no Rio de Janeiro, em 1953. A produção de discos fonográficos torna-se, portanto, o eixo principal desta prática no contexto profissional, constituindo um verdadeiro “cordel sonoro” que acarretaria mudanças significativas nesta tradição musical permeada por uma permanente e incessante interlocução entre seus praticantes.
Passado mais de meio século, a sanfona de oito baixos e o acordeom de cento e vinte baixos continuam sendo os dois instrumentos solistas fundamentais na música nordestina destinada aos bailes, ou, melhor dizendo, “forrós”. O repertório tradicional continua sendo transmitido oralmente, de pai para filho e os inumeráveis êxitos fonográficos de Luiz Gonzaga continuam a vigorar, se intensificando sobretudo no período junino. Como dizia Luiz Gonzaga, “o fole de oito baixos é o pai do acordeom de cento e vinte baixos”. Portanto, o fole de oito baixos que era tocado por Januário “na beira do riacho[11]” e a sanfona de cento e vinte baixos, introduzida na música nordestina pelo filho Luiz Gonzaga, representam o conflito entre duas gerações nas práticas musicais que envolvem os bailes populares nordestinos, a tradição inventada e reinventada no fio do tempo.


Verbetes:

A sanfona de oito baixos é um tipo de acordeom diatônico, originado do modelo suíço, desenvolvido pelos construtores vienenses Drollinger e Hermann em 1836. Este instrumento é composto por uma, duas ou três fileiras de botões dispostos diagonalmente para a mão direita, e oito botões (notas graves - baixos e acordes de acompanhamento) para a mão esquerda. A principal característica dos acordeões diatônicos é a “bi-sonoridade”, ou seja, de acordo com a abertura ou fechamento do fole, cada botão ou tecla produz sons diferentes. Deste modo, o movimento do fole está diretamente relacionado à execução das melodias. Na região Nordeste é conhecido como fole de oito baixos, harmônica ou pé-de-bode, entre outras denominações. Muitos sanfoneiros de oito baixos adquiriram prestígio e reconhecimento, tais como Gerson Filho, Pedro Sertanejo, Zé Calixto, Abdias, Geraldo Correia, Arlindo dos 8 baixos, Luizinho Calixto e Heleno dos 8 baixos.

O acordeom de cento e vinte baixos pertence ao ramo dos acordeões cromáticos, que, ao contrario dos acordeões diatônicos, produzem a mesma nota para cada botão ou tecla, tanto no sentido de abertura quanto de fechamento do fole. O modelo mais difundido deste instrumento se caracteriza pelo teclado para a mão direita. Começou a ser amplamente divulgado a partir do inicio do século XX, sobretudo nos Estados Unidos, com o êxito fonográfico dos irmãos ítalo-americanos Guido e Pietro Deiro. No Brasil, o instrumento tornou-se uma verdadeira febre nas décadas de 1940 e 50, tendo sido amplamente divulgado por acordeonistas como Antenógenes Silva, Mario Mascarenhas e Alencar Terra. A facilidade digital proporcionada pelo teclado da mão direita e as possibilidades harmônicas dos baixos e acordes da mão esquerda, fizeram com que este instrumento fosse adotado por parte majoritária dos sanfoneiros profissionais. No nordeste, onde o instrumento é mais conhecido simplesmente como sanfona, tem surgido uma quantidade expressiva de representantes significativos, tais como Dominguinhos, Sivuca, Oswaldinho do Acordeom e Camarão.

Trio Nordestino - Luiz Gonzaga desenvolveu de forma alquímica, uma combinação sonora peculiar, que, devido ao êxito comercial do baião, se disseminou e popularizou, tornando – se uma formação “tradicional”. Segundo o depoimento de sanfoneiros como Dominguinhos e Zé Calixto, foi através de Luiz Gonzaga, que a formação de “trio nordestino” se propagou, e com a circulação massiva do repertório do baião, tornou-se preponderante em relação a outros conjuntos instrumentais. Basicamente, o trio nordestino é constituído de sanfona, triângulo e zabumba. De acordo com Zé Calixto, “o triângulo veio a ser mais explorado, depois que surgiu o baião. Pois o baião se identificou com o zabumba e o triângulo”. O próprio Luiz Gonzaga costumava assumir a invenção do “trio nordestino”, explicando como havia chegado a esta instrumentação.
Eu vinha cantando sozinho, mas eu precisava de um ritmo, porque a música nordestina precisava de ‘couro’ - couro que eu digo é couro de cachorro ou de bode, negócio pra bater, que aqui no Rio de Janeiro se usa couro de gato. Então primeiramente eu usei o zabumba baseado nas bandas de couro lá do sertão que a gente chama de ‘esquenta muié’. Mas, a zabumba só, eu fiquei assim com “asa quebrada”, até descobrir um instrumento bastante vibrante, agudo, pra brigar com a zabumba. Até que vi, no Recife, passar um menino vendendo cavaco chinês[i] (...) tocando o “tinguilim”. Aí, ele fazia aquilo com uma certa cadência. Aí eu disse: - Pronto! Achei o marido da zabumba.

Desde então, o trio nordestino se tornou a formação principal dos conjuntos de forró: sanfona, zabumba e triângulo.

Zabumba. Tambor circular, constituído de duas membranas, uma superior, tocada com baqueta felpuda, conhecida como “marreta”, e outra, inferior, tocado por baqueta fina conhecida como “bacalhau”. Deste modo, possui a conjugação timbrística do acento grave (superior/marreta) e da resposta aguda (inferior/bacalhau).

Triângulo. Instrumento idiofone, pequena armação triangular de alumínio tangida com um pequeno bastão. Antigamente, eram feitos com ferragem, daí o nome de “ferrinhos” em Portugal. Antes de Luiz Gonzaga, este instrumento era conhecido pelo nome de Tinguilim.









[1] Viola de arame: Um dos nomes atribuídos à viola, cordofone de cinco pares de cordas dedilhadas, muito difundido durante o período de colonização do Brasil.
[2] Siqueira, Batista. A origem do termo samba. Rio de Janeiro, Ibrasa, 1977.
[3] Lessa, Barbosa & Cortes, Paixão. Danças e Andanças  da tradição gaúcha. Porto Alegre, Editora Garatuja, 1975.
[4] Siqueira, Batista. op.cit.
[5] Araújo, Samuel. “Brazil: Forró, music for maids and taxi drivers e Asa Branca: Accordion Forró from Brazil”. Revista de Música Latinoamericana. v. 12, n.1, p. 97 – 99, 1991.
[6] Segundo a história oral, o nome da localidade se deve à presença dos Índios Ansú, antigos habitantes da região.
[7] A Koch Company foi uma fábrica alemã que produziu entre 1903 e 1929, quando veio a ser absorvida pela Hohner. Provavelmente estes instrumentos eram importados pela Marca Veado, conhecida fábrica de cigarros da época.
[8] Referência ao texto narrado por Gonzaga em “Respeita Januário” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira).  A gravação original de “Respeita Januário” data de 13 de abril de 1950, pela gravadora RCA Victor, Rio de Janeiro.
[9] Corruptela de scottish, dança de origem européia.
[10] A gravação original de “Respeita Januário” data de 13 de abril de 1950, pela gravadora RCA Victor, Rio de Janeiro.
[11] Referência ao refrão do xote “Januário vai tocar”, de autoria do próprio Januário: “Ai, ai, sanfona de oito baixos do tempo que eu tocava na beira do riacho, ai, ai, sanfona de oito baixos, a cidade te acha ruim mas eu não acho”.








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