Olá amigos,
segue abaixo a versão integral do artigo publicado parcialmente na revista da Unidos da Tijuca. As notas se encontram no final do texto.
Saudações sanfoneiras,
Leo Rugero
Dos
8 aos 120 baixos, de Januário a Luiz Gonzaga – Algumas impressões sobre a sanfona
na região Nordeste
Leo Rugero
No dia 23 de
maio de 1829, construtor de órgãos austríaco Cyrill Demian registrava a patente
de seu novo invento, um instrumento musical que seria batizado como “acordeom”.
A novidade despertaria o interesse de outros construtores de instrumentos,
suscitando o surgimento de novos modelos e formatos. Aos poucos, a invenção se
espalharia por toda Europa e conseqüentemente para as respectivas colônias.
A partir da
segunda metade do séc. XIX, o acordeom começa a ser amplamente difundido no
Brasil, processo que se intensifica através da maciça migração italiana na
região Sul. Em meio à leva de imigrantes, estavam instrumentistas e
construtores de acordeom, que a essa altura, já havia se tornado uma verdadeira
febre na Europa.
Entretanto,
ainda não sabemos detalhadamente como o acordeom se espalhou no Nordeste
brasileiro. Provavelmente, isso teria ocorrido ao longo do Séc.XIX, pelas mãos
de mascates, tropeiros, caixeiros-viajantes. Na virada do Séc. XX, o
instrumento começa a adquirir relevo nas práticas musicais desta região, com a
rápida assimilação de um modelo específico de acordeom diatônico, que passou a
ser regionalmente conhecido como fole de oito baixos ou sanfona de oito baixos.
Para o musicólogo paraibano Baptista Siqueira, a sanfona teria gradualmente
substituído a viola de arame[1]
no contexto dos bailes rurais[2].
Como as sanfonas eram pequenas, leves, facilmente transportáveis, e ainda
poderiam conservar a afinação por um período longo de tempo, o instrumento
teria sido facilmente adaptado à vida nômade de tropeiros e cangaceiros ou
mesmo entre vaqueiros e boiadeiros a serviço dos latifúndios, de forma análoga
ao que teria ocorrido na região cisplatina[3].
Destes instrumentos poderia se extrair um som de forte intensidade, capaz de
ser ouvido a distância, sendo ideal para os bailes “nas salas das choupanas, em
danças animadas, nas vivendas dos pés de serra”[4].
Na região
Nordeste, este tipo de acordeom recebeu uma afinação peculiar, um repertório
específico e um estilo característico. Devido à presença intrínseca em
festividades, difundiu-se entre as populações da zona rural e de periferia
urbana, constituindo o imprescindível papel do ”sanfoneiro” em atividades
sociais como casamentos, batizados, festas do ciclo junino, sobretudo no
contexto de instrumento animador dos bailes (forrós). O repertório tradicional
foi sendo construído através da apropriação e adaptação de danças européias que
haviam sido aclimatadas aos sertões, tais como valsa, scottish(xote), polca e quadrilha. Também seriam
incorporadas danças de provável origem autóctone como o baião e o xaxado que,
mais tarde, viriam a ser adaptadas por Luiz Gonzaga ao contexto fonográfico de
sua época. A consolidação de um mercado fonográfico para a produção de música de
origem nordestina se solidificaria com a consagração de Luiz Gonzaga no Rio de
Janeiro nas décadas de 1940 e 50[5],
possibilitando que o estilo nordestino da sanfona obtivesse reconhecimento e
conquistasse um segmento significativo no mercado fonográfico destinado a música
nordestina.
A venturosa
carreira fonográfica de Gonzaga se inicia no dia 14 de março de 1941, quando
realiza suas primeiras gravações como solista de acordeom nos estúdios da
RCA-Victor, no Rio de Janeiro. A primeira música que gravou foi “Vira e Mexe”, um solo instrumental que
despertaria o interesse de público e crítica, não apenas devido a brejeirice e
vivacidade do intérprete. bem como ao domínio técnico e o estilo inovador
trazido pelo solista.
O que havia de
tão diferenciado no estilo de Luiz Gonzaga? Para responder a isso é necessário
regressarmos ao passado, em direção à Serra do Araripe, mais precisamente na
Fazenda Caiçara, terras outrora pertencentes ao coronel Gauder Maximiliano
Alencar de Araripe, o Barão de Exu[6].
Foi bem ali, pleno sertão de Pernambuco, que em 13 de dezembro de 1912, dia de
São Luiz Gonzaga, viria ao mundo o primogênito do casal Januário José dos
Santos e Ana Batista de Jesus. Ainda pequeno, o menino Luiz Gonzaga começaria a
se interessar pelos sons extraídos da sanfona de oito baixos pelos dedos ágeis
de seu pai, respeitado tocador e afinador de sanfonas da região. Logo, não
demoraria muito para que o rebento seguisse os passos do pai Januário. Em 1920,
por intermédio do Coronel Manuel Aires de Alencar, o menino Gonzaga adquire seu
primeiro instrumento, uma sanfona de oito baixos Koch, marca Veado[7].
Vieram então os primeiros bailes e o filho de Januário foi adquirindo prestígio
e despertando admiração entre os arredores da Serra do Araripe.
Assim, Luiz Gonzaga foi crescendo, com
seu forte temperamento artístico moldado pela tradição músico - poética dos
sertões: os aboios dos vaqueiros, os desafios dos cantadores, as ladainhas das
cantadeiras, a música das bandas de pífanos e sobretudo, o som da sanfona de
oito baixos do velho Januário, tal como um crisol, refletindo todas as
influências circundantes. E foi esta bagagem que Luiz Gonzaga levou consigo em
seu “matulão”, desde quando arribou o pé de casa, ainda com “dezoito anos
incompletos”[8].
Algum tempo depois, na década de 1930, Luiz Gonzaga viria a conhecer o acordeom de cento e vinte baixos com
teclado de piano para a mão direita, modelo então muito em voga na região
Sudeste. Prontamente adquire um exemplar do instrumento e através de um colega
do Exército, o mineiro Domingos Ambrósio, aprende a tocá-lo.
Portanto, o
estilo inconfundível delineado por Luiz Gonzaga se desenvolve a partir do
equilíbrio entre a prática musical da sanfona de oito baixos da região Nordeste
e a incorporação do acordeom de cento e vinte baixos, tão presente nos centros
urbanos da região Sudeste, mas ainda desconhecido no sertão nordestino. A
partir de 1949, a definitiva consagração de Luiz Gonzaga com “O baião” tornaria
o acordeom de teclado e cento e vinte baixos, um instrumento muito difundido no
sertão nordestino.
Com o xote[9]
“Respeita Januário” de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, a prática nordestina
da sanfona recebe aquela que parece ser sua mais convincente perspectiva
histórica. Esta música descreve uma visita de Luiz Gonzaga ao seu berço natal,
o município de Exu, no alto sertão pernambucano, depois de sua consagração
profissional no Sudeste, onde já havia recebido o título honorífico de “Rei do
Baião”[10].
Luiz Gonzaga trazia em sua bagagem, um moderno acordeom de teclado e cento e
vinte baixos, que, aquela altura, nas regiões interioranas, ainda consistia em
uma “novidade”. Do mesmo modo, trazia a influência midiática de cantor,
compositor e acordeonista de sucesso fonográfico e radiofônico. Porém, a certo
momento da narrativa, surge um personagem, o vaqueiro conhecido como “Velho
Jacó”, que adverte o rei do baião, dizendo: “Luiz, respeite os oito baixos do
seu pai”.
Quando eu cheguei lá no sertão, eu quis mangar de
Januário com meu fole prateado. Só de baixo cento e vinte, botão preto miudinho
feito nego impariado. Mas, antes de fazer bonito, de passagem por Granito,
foram logo me dizendo: de Itaboca à Rancharia, de Salgueiro à Bodocó, Januário
é o maior! E foi aí que me falou meio zangado o “veio” Jacó: - Luiz, respeito
os oito baixos, Luiz, respeito os oito baixos, Luiz, tu pode ser mais famoso,
mas seu pai é mais tinhoso e com ele ninguém vai, Luiz. Luiz, respeite os oito
baixos do seu pai!
Sendo o fole de
oito baixos um instrumento que antecede historicamente o acordeom de cento e
vinte baixos em quase um século, as construções simbólicas em torno das
representações destes dois instrumentos na cultura nordestina foram edificadas
ao redor das relações entre pai e
filho, moderno e tradicional, urbano e agrário, a migração nordestina para os
grandes centros urbanos e a permanência do homem no campo.
Sob o impacto alvissareiro de
“Respeita Januário”, um número
significativo de instrumentistas representativos da música instrumental
praticada no fole de oito baixos nos bailes rurais, iniciam carreira
fonográficas relativamente estáveis, a partir das gravações pioneiras do
alagoano Gerson Filho, no Rio de Janeiro, em 1953. A produção de discos
fonográficos torna-se, portanto, o eixo principal desta prática no contexto
profissional, constituindo um verdadeiro “cordel sonoro” que acarretaria
mudanças significativas nesta tradição musical permeada por uma permanente e
incessante interlocução entre seus praticantes.
Passado mais de
meio século, a sanfona de oito baixos e o acordeom de cento e vinte baixos
continuam sendo os dois instrumentos solistas fundamentais na música nordestina
destinada aos bailes, ou, melhor dizendo, “forrós”. O repertório tradicional
continua sendo transmitido oralmente, de pai para filho e os inumeráveis êxitos
fonográficos de Luiz Gonzaga continuam a vigorar, se intensificando sobretudo
no período junino. Como dizia Luiz Gonzaga, “o fole de oito baixos é o pai do
acordeom de cento e vinte baixos”. Portanto, o fole de oito baixos que era
tocado por Januário “na beira do riacho[11]”
e a sanfona de cento e vinte baixos, introduzida na música nordestina pelo
filho Luiz Gonzaga, representam o conflito entre duas gerações nas práticas
musicais que envolvem os bailes populares nordestinos, a tradição inventada e
reinventada no fio do tempo.
Verbetes:
A sanfona de oito baixos é um tipo
de acordeom diatônico, originado do modelo suíço, desenvolvido pelos
construtores vienenses Drollinger e Hermann em 1836. Este instrumento é
composto por uma, duas ou três fileiras de botões dispostos diagonalmente para
a mão direita, e oito botões (notas graves - baixos e acordes de
acompanhamento) para a mão esquerda. A principal característica dos acordeões
diatônicos é a “bi-sonoridade”, ou seja, de acordo com a abertura ou fechamento
do fole, cada botão ou tecla produz sons diferentes. Deste modo, o movimento do
fole está diretamente relacionado à execução das melodias. Na região Nordeste é
conhecido como fole de oito baixos, harmônica ou pé-de-bode, entre outras
denominações. Muitos sanfoneiros de oito baixos adquiriram prestígio e reconhecimento,
tais como Gerson Filho, Pedro Sertanejo, Zé Calixto, Abdias, Geraldo Correia,
Arlindo dos 8 baixos, Luizinho Calixto e Heleno dos 8 baixos.
O acordeom de cento e vinte baixos
pertence ao ramo dos acordeões cromáticos, que, ao contrario dos acordeões
diatônicos, produzem a mesma nota para cada botão ou tecla, tanto no sentido de
abertura quanto de fechamento do fole. O modelo mais difundido deste
instrumento se caracteriza pelo teclado para a mão direita. Começou a ser
amplamente divulgado a partir do inicio do século XX, sobretudo nos Estados
Unidos, com o êxito fonográfico dos irmãos ítalo-americanos Guido e Pietro
Deiro. No Brasil, o instrumento tornou-se uma verdadeira febre nas décadas de
1940 e 50, tendo sido amplamente divulgado por acordeonistas como Antenógenes
Silva, Mario Mascarenhas e Alencar Terra. A facilidade digital proporcionada
pelo teclado da mão direita e as possibilidades harmônicas dos baixos e acordes
da mão esquerda, fizeram com que este instrumento fosse adotado por parte majoritária
dos sanfoneiros profissionais. No nordeste, onde o instrumento é mais conhecido
simplesmente como sanfona, tem surgido uma quantidade expressiva de
representantes significativos, tais como Dominguinhos, Sivuca, Oswaldinho do
Acordeom e Camarão.
Trio Nordestino - Luiz Gonzaga
desenvolveu de forma alquímica, uma combinação sonora peculiar, que, devido ao
êxito comercial do baião, se disseminou e popularizou, tornando – se uma
formação “tradicional”. Segundo o depoimento de sanfoneiros como Dominguinhos e
Zé Calixto, foi através de Luiz Gonzaga, que a formação de “trio nordestino” se
propagou, e com a circulação massiva do repertório do baião, tornou-se
preponderante em relação a outros conjuntos instrumentais. Basicamente, o trio
nordestino é constituído de sanfona, triângulo e zabumba. De acordo com Zé
Calixto, “o triângulo veio a ser mais explorado, depois que surgiu o baião.
Pois o baião se identificou com o zabumba e o triângulo”. O próprio Luiz
Gonzaga costumava assumir a invenção do “trio nordestino”, explicando como
havia chegado a esta instrumentação.
Eu
vinha cantando sozinho, mas eu precisava de um ritmo, porque a música
nordestina precisava de ‘couro’ - couro que eu digo é couro de cachorro ou de
bode, negócio pra bater, que aqui no Rio de Janeiro se usa couro de gato. Então
primeiramente eu usei o zabumba baseado nas bandas de couro lá do sertão que a
gente chama de ‘esquenta muié’. Mas, a zabumba só, eu fiquei assim com “asa
quebrada”, até descobrir um instrumento bastante vibrante, agudo, pra brigar
com a zabumba. Até que vi, no Recife, passar um menino vendendo cavaco chinês[i] (...) tocando o “tinguilim”.
Aí, ele fazia aquilo com uma certa cadência. Aí eu disse: - Pronto! Achei o
marido da zabumba.
Desde então, o trio nordestino se tornou a formação principal dos
conjuntos de forró: sanfona, zabumba e triângulo.
Zabumba. Tambor circular,
constituído de duas membranas, uma superior, tocada com baqueta felpuda,
conhecida como “marreta”, e outra, inferior, tocado por baqueta fina conhecida
como “bacalhau”. Deste modo, possui a conjugação timbrística do acento grave
(superior/marreta) e da resposta aguda (inferior/bacalhau).
Triângulo. Instrumento
idiofone, pequena armação triangular de alumínio tangida com um pequeno bastão.
Antigamente, eram feitos com ferragem, daí o nome de “ferrinhos” em Portugal.
Antes de Luiz Gonzaga, este instrumento era conhecido pelo nome de Tinguilim.
[1] Viola
de arame: Um dos nomes atribuídos à viola, cordofone de cinco pares de cordas
dedilhadas, muito difundido durante o período de colonização do Brasil.
[2]
Siqueira, Batista. A origem do termo samba. Rio de Janeiro, Ibrasa, 1977.
[3] Lessa,
Barbosa & Cortes, Paixão. Danças e Andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre, Editora Garatuja, 1975.
[4]
Siqueira, Batista. op.cit.
[5]
Araújo, Samuel. “Brazil: Forró, music for maids and taxi drivers
e Asa Branca: Accordion Forró from
Brazil”. Revista de
Música Latinoamericana. v. 12, n.1, p. 97 – 99,
1991.
[6]
Segundo a história oral, o nome da localidade se deve à presença dos Índios
Ansú, antigos habitantes da região.
[7] A Koch
Company foi uma fábrica alemã que produziu entre 1903 e 1929, quando veio a ser
absorvida pela Hohner. Provavelmente estes instrumentos eram importados pela
Marca Veado, conhecida fábrica de cigarros da época.
[8] Referência
ao texto narrado por Gonzaga em “Respeita Januário” (Luiz Gonzaga e Humberto
Teixeira). A gravação original de
“Respeita Januário” data de 13 de abril de 1950, pela gravadora RCA Victor, Rio
de Janeiro.
[9]
Corruptela de scottish, dança de origem européia.
[10] A
gravação original de “Respeita Januário” data de 13 de abril de 1950, pela
gravadora RCA Victor, Rio de Janeiro.
[11] Referência
ao refrão do xote “Januário vai tocar”, de autoria do próprio Januário: “Ai,
ai, sanfona de oito baixos do tempo que eu tocava na beira do riacho, ai, ai,
sanfona de oito baixos, a cidade te acha ruim mas eu não acho”.
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