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27 de jun. de 2011

Januário - texto de Leo Rugero

Entre os dias 07 e 11 de junho, tive oportunidade de conhecer Exu, cidade natal de Luiz Gonzaga, por intermédio do programa Globo Repórter.O convite foi realizado em decorrência de minha pesquisa sobre a prática nordestina da sanfona de oito baixos. Viajei ao lado da excelente equipe formada pelo repórter José Raimundo, o produtor Jorge Ghiaroni, o cinegrafista Jota Junior e o assistente Toni Abreu. Embora tenha sido breve, foi uma viagem intensa, de muitos aprendizados.
No dia 08, visitamos o Parque Asa Branca. Outrora um sitio pertencente à Luiz Gonzaga, o parque abriga a Casa de Gonzagão, que foi a última moradia de Luiz Gonzaga; o Museu do Gonzagão, que coleciona instrumentos musicais, fotografias raras, partituras e objetos pessoais que pertenceram ao Rei do Baião; o Mausoléu do Gonzagão, onde se guarda o tumulo de Luiz Gonzaga; e, por fim, a Casa de Januário.
Como não poderia deixar de ser, escrevi um pequeno diário de campo e julguei relevante postar o trecho abaixo, por dois aspectos: primeiramente, por se tratar de uma reflexão sobre o momento da entrevista que foi selecionado para a edição final do programa. Em segundo lugar, pelo fato de corresponder a Casa de Januário, figura mítica que ocupa o posto de patrono da sanfona de oito baixos na região nordeste.
A Casa de Januário tem algo de mágico. Esta casa carrega um apelo irresistível, talvez por conter um elemento pitoresco: é decorada como uma casa, e não como um museu. Deste modo, há um tom acolhedor no ambiente onde a sugestão é que Januário ainda estivesse presente naquele lugar. A varandinha, com duas cadeiras. O quarto, com a cama, o cajado e o quadro com os filhos. Seu Januario e Dona Santana nas fotografias em porta-retratos. O oratório no centro da sala. Um antigo gramofone e um rádio de pilha sobre a mesa perto da janela. Uma sanfona antiga. O forno à lenha da cozinha...
 Me imaginei tomando um cafezinho e trocando dois dedos de prosa com o velho Januário. E foi nesta casa, em meio a este ambiente, que ocorreu aquele que foi o registro escolhido pelos editores do programa: o pesquisador, visivelmente emocionado, ao deparar-se com uma antiga sanfona que teria sido montada por Januário. Para alguns, este instrumento jamais teria pertencido ao “vovô do baião”, o que só vim a saber depois das filmagens. Mas como sabê-lo? Januário era artesão e afinador, e é natural imaginar que ele mantinha vários instrumentos, muitos dos quais jamais tenha utilizado profissionalmente. No marketing do museu, esta sanfona é mostrada como um instrumento construído por Januário, o que pode não condizer com a verdade. É uma sanfona de provável origem alemã ou francesa, que deve ter sido construída ainda no séc. XIX. No entanto, Januário pode ter reaproveitado partes de instrumentos para remontá-la, o que é muito comum entre os artesãos que trabalham com sanfonas antigas do Nordeste. Em minha coleção particular, possuo ao menos três sanfonas que já perderam sua identidade original, de tal modo que foram modificadas, tanto em seus componentes internos como em seu aspecto externo. Na matéria, o instrumento foi apresentado como uma das mais antigas sanfonas do Brasil, o que é justo, porém, teria sido realmente montada por Januário? Teria este instrumento chegado ao sertão na época de sua construção? Mais uma vez, a verdade literal cede à licença poética, e aquele velho instrumento responde aos anseios de uma resposta à origem, ao marco-zero, ao que há de mais ancestral na cultura. E a razão cede à fantasia do momento. E o pior: a imagem do pesquisador emocionado que confirma a antiguidade do instrumento e é levado pela “folclorização” a acreditar que ali está um fóssil do passado da sanfona nordestina. 
Há um aspecto da musicologia que pode afeiçoar-se ao trabalho arqueológico das escavações do passado. E nossas conclusões fenecem ao tempo, tal como fenecem os fósseis. Foi esta a imagem escolhida para a edição final do programa. Talvez, por apresentar uma particularidade: não dizer nada e ao mesmo tempo dizer tudo. E reforçar a natureza mítica de um discurso avesso ao rigor teórico acadêmico, que encontra ressonância no poder do mito contido simbolicamente nas imagens. No caso, a sanfona de Januário, um mito fundador da prática nordestina da sanfona de oito baixos. O pesquisador, cabisbaixo, cede a fugacidade momentânea e incorre no possível erro de deixar-se levar pelo vento do momento, concordando com o valor atribuído ao objeto, e de tudo aquilo que sabe, acaba revelando ao público aquilo que não sabe, sua santa ignorância, irmanando-se com o espectador comum que está descobrindo aquele assunto assim como o pesquisador e o apresentador naquele dado instante. Agora é tarde, e a história é reescrita a mercê de sua própria sorte, através da arte daqueles que a escrevem.


Foto: Leo Rugero

Foto: Jota Jr

2 comentários:

  1. Leo,
    Te vi na TV Globo, fico contente em saber que o seu trabalho está tendo retorno.

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  2. Prezado Leo Rugero,
    Parabéns pelos seus textos e por sua dedicação a sanfona de oito baixos. Sua contribuição é enorme para música popular brasileira e para preservação da memória dos sanfoneiros de oito baixo, e, sobretudo para que as gerações continue essa tradição.

    Saudações sanfônicas,

    Jonas Rodrigues de Moraes,
    doutorando em História Social - PUC/SP
    autor do livro: SONS DEO SERTÃO: Luiz Gonzaga, Música e Identidade. São Paulo: Annablume, 2012.

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